Não externar felicidade com algumas coisas nem sempre
significa que elas não nos fizeram bem. Tem coisas que absorvemos aos poucos.
Ficam na lembrança cozinhando feito doce de tacho na memória e quanto mais
apurado melhor fica.
Assim vejo a viagem que fiz ao Espírito Santo nesse dezembro
de 2014. Pela primeira vez viajei sozinha, e confesso que mesmo não gostando
das 15 noites de solidão, foi importante por me empurrar a descobrir coisas e
pessoas. Devido ao trabalho visitei cerca de 75 casas na zona rural da Serra do
Caparaó. Dois municípios: Guaçuí e Alegre. Neles, quatro assentamentos da
Reforma Agrária.
Queria eu poder trabalhar dessa maneira pelo resto da vida.
No primeiro assentamento que fui consegui uma carona numa velha moto. Fui
comendo vento e com o coração na mão ao olhar os penhascos que rodeavam o
caminho. A paisagem e o relevo eram de Serra, morros, partes de reserva da Mata
Atlântica. Uma paisagem linda que eu nunca teria visitado se não fosse esta
oportunidade de trabalho. Altitude elevada, ar fresco, cachoeiras em alguns
cantos avistados de longe e as nuvens nos picos das montanhas pareciam estar
perto. Para além dessas belezas que a natureza encheu meus olhos, me emocionei com
o povo matuto da terra.
O velho caipira daqui, dali de acolá...
Quando entro em contato com esses modos de vida sinto
acessar minha ancestralidade. Essas coisas que a racionalidade não explica, mas
que inclusive eu já quis fazer dissertação de mestrado sobre.
Em toda casa visitada me ofereciam um gole de café, água,
banana que foi pega no cacho ali no quintal. Teve dias que perdi o sono por não
rejeitar o gesto da cafeína. Um adolescente citadino diria ver ali pobreza. Eu
só vi simplicidade e comida em abundância. Claro que o processo de Reforma
Agrária no Brasil é passível de críticas, faltam incentivos técnicos e um verdadeiro apoio, não
só financeiro, para a agricultura familiar. Em alguns assentamentos com
agrovilas pude constatar que os lotes já haviam sido repassados ilegalmente e
estes espaços começam a ser “favelizados”. Pessoas que moram no lote mas
trabalham na cidade e dessa maneira dependem integralmente de mercado, lojas,
coisas assim. Mas quando falo da
simplicidade da casa e da comida é uma observação cultural, principalmente por
parte dos mais velhos.
Certo dia, passei por um dos assentamentos para aplicar o
questionário. Apresentei-me da pequena porteira e fui entrando. O casal se
encontrava debaixo de uma mangueira e embaixo dela uma enorme mesa improvisada
onde limpavam e cortavam muita carne. “Não repara não que hoje matamos um porco
e estamos aqui na lida.”
Achei que aquilo fosse me causar algum mal estar, mas não.
A carne tem uma outra função para o sertanejo, é rara e
valorizada. Carne de boi é raridade e um porco como o que mataram provavelmente
serviria a família toda por mais de uma semana.
Aplicando o questionário verbalmente observava a
cumplicidade daquele casal na sua meia idade na lida da carne. Trocavam poucas
palavras mas agiam com as mãos como se o gesto de um complementasse o gesto do
outro. Casal sem filhos por perto, cuidam do assentamento, dividem as tarefas.
Bem sabemos que o campo é patriarcal, mas a funcionalidade das relações
entrelaçadas pelo amor que ali vi explicam coisas para além das convenções
sociais. Um nó na minha garganta cresceu.
Talvez estas constatações tenham feito eu olhar para minha
própria vida. Eles vivem um tempo diferente do meu, que é acelerado, que a
muito parou de se orientar pelo nascer e pôr do sol. O que aprendemos com isso?
Aprendemos que estamos traçando caminhos tortos e tristes... Aprendi com essa
viagem que quero desacelerar o passo, que quero um pedaço de terra e grama para
tocar na pele. Aprendi ainda que quero amor simples, cumplicidade nas mãos e
simplicidade nas palavras. Nós aqui da “rua” (os capixabas chamam a cidade de
rua e o sítio de roça) dificultamos o já difícil.
O que ocorreu depois foi que no final do trabalho do dia,
percorrendo casas nos assentamentos, eu que não gosto de carne de porco voltei
para comer uma porção daquela cumplicidade e fui grata com o convite oferecido.
Uma angústia comum e que eu já havia observado nas minhas
pesquisas e trabalhos de campo é a constatação de o quanto o campo está
envelhecendo. Poucos das novas gerações se interessam em permanecer na roça. É
algo explicável, porém preocupante. A Agricultura familiar nos oferece os alimentos
e sem estas mãos futuramente enfrentaremos alguma crise. O desafio é pensar
como tornar o campo atrativo para as novas gerações. Penso eu (e outros
teóricos e especialistas) em algo que aliasse campo e cidade, tecnologia e
saberes tradicionais e assim por diante. Por sorte observei que alguns jovens
dos lugares que visitei já se apegaram à essas ideias, conhecem o conceito da
Agroecologia, estudaram fora mas regressaram... um futuro para se refletir e um
enorme desafio que já deveria ser a preocupação da maioria, inclusive daqueles
que nenhum contato tem com a roça, mas se alimentam dela.
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