Tem gente que passa pela vida da gente, não fica, não faz
parte do convívio diário mas cada encontro é como um brigadeiro doce, que numa
pequena dose de felicidade traz coisas boas nem demais nem de menos. Hoje um
querido amigo, que por razões desconhecidas da vida não temos tanto contato, me
trouxe essas lindas palavras da Clarice, dizendo que se lembrou de mim quando
as leu. Eu não me cabi de emoção. Por fim, modestamente concordei e com as
maçãs do rosto coradas atrás da tela internética aceitei o elogio, pois não é
fácil aceitar elogios, ao contrário do que muitos pensam.
"Recebi uma lição de um de meus filhos, antes dele fazer 14 anos. Haviam me telefonado avisando que uma moça que eu conheci ia tocar na televisão, transmitido pelo Ministério da Educação. Liguei a televisão mas em grande dúvida. Eu conhecera essa moça pessoalmente e ela era excessivamente suave, com voz de criança, e de um feminino-infantil. E eu me perguntava: terá ela força no piano? Eu a conhecera num momento muito importante: quando ela ia escolher a "camisola do dia" para o casamento. As perguntas que me fazia eram de uma franqueza ingênua que me surpreendia. Tocaria ela piano? Começou. E, Deus, ela possuía a força. Seu rosto era um outro, irreconhecível. Nos momentos de violência apertava violentamente os lábios. Nos instantes de doçura entreabria a boca, dando-se inteira. E suava, da testa escorria para o rosto o suor. De surpresa de descobrir uma alma insuspeita, fiquei com os olhos cheios de água, na verdade eu chorava. Percebi que meu filho, quase uma criança, notara, expliquei: estou emocionada, vou tomar um calmante. E ele: --Você não sabe diferenciar emoção de nervosismo? Você está tendo uma emoção. Entendi, aceitei, e disse-lhe: --Não vou tomar nenhum calmante. E vivi o que era para ser vivido."
SENSIBILIDADE INTELIGENTE
Pessoas que às vezes querem me elogiar
chamam-me de inteligente. E ficam surpreendidas quando digo que ser inteligente
não é meu ponto forte e que sou tão inteligente quanto qualquer pessoa. Pensam,
então, inclusive que estou sendo modesta.
É claro que tenho alguma inteligência: meus estudos o provaram, e várias situações das quais se sai por meio da inteligência também provaram. Além de que posso, como muitos, ler e entender alguns textos considerados difíceis.
É claro que tenho alguma inteligência: meus estudos o provaram, e várias situações das quais se sai por meio da inteligência também provaram. Além de que posso, como muitos, ler e entender alguns textos considerados difíceis.
Mas muitas vezes a minha chamada inteligência
é tão pouca como se eu tivesse a mente cega. As pessoas que falam de minha
inteligência estão na verdade confundindo inteligência com o que chamarei agora desensibilidade
inteligente. Esta, sim, várias vezes tive e tenho.
E, apesar de admirar a inteligência pura, acho
mais importante, para viver e entender os outros, essa sensibilidade
inteligente. Inteligentes são quase a maioria das pessoas que conheço. E
sensíveis também, capazes de sentir e de comover. O que, suponho, eu uso quando
escrevo, e nas minhas relações com amigos, é esse tipo de sensibilidade. Uso-a
mesmo em ligeiros contatos com pessoas, cuja atmosfera tantas vezes capto
imediatamente.
Suponho que este tipo de sensibilidade, uma
que não só se comove como por assim dizer pensa sem ser com a cabeça, suponho
que seja um dom. E, como dom, pode ser abafado pela falta de uso ou
aperfeiçoar-se com o uso. Tenho uma amiga, por exemplo, que, além de
inteligente, tem o dom da sensibilidade inteligente, e, por profissão, usa
constantemente esse dom. O resultado então é o que eu chamaria de coração inteligente em tão alto grau que a guia e guia os
outros como um verdadeiro radar.
Clarice Lispector, sempre.
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