terça-feira, 7 de junho de 2016

"Uma Duas", breves impressões sobre a ficção de Eliane Brum

                               
                                        Créditos das fotos: Lilo Clareto/Divulgação
 



Foi inevitável sentar, respirar e escrever depois da leitura desse livro. Ele é um soco no estômago, aquele incômodo nauseante...
É um livro curto, rápido. Mas eu, desorganizada que sou, o li em pequenas doses, sempre incômodas. Eliane Brum incomoda. Sua enorme inteligência e sensibilidade às vezes parecem a dor de uma agulha, mas que injeta em nós doses necessárias de realidade.
Em algum momento ela escreve que “a vida só é possível na superfície”. O que está submerso é mesmo inexplicável e escrever talvez seja uma tentativa de não deixar quem tudo se afogue.
Nesse primeiro livro de ficção, Eliane mergulha numa relação entre mãe e filha, desnaturalizando o que seria uma relação “saudável”, nos expondo diferentes formas de amar e sentir ao contrário do que endeusamos como fraterno e maternal.
De certa maneira, torna pungente aquela ferida relacionada aos nós do cordão umbilical que muitas vezes sentimos e vergonhosamente sublimamos, carregando ou enterrando sem resolver. O livro expõe, sangra, arranha, quase cheira mal. Construir nossa humanidade tem disso: sem perfumes ou belas canções, mas não menos amor.
Para quem já se surpreende com Eliane Brum e sua capacidade reflexiva  de condensar o pessoal e o político em seus textos jornalísticos, talvez também se surpreenda com esse texto ficcional, que poderia ser sobre eu, você, sua avó, seu pai...mas o assunto não está na superfície.

domingo, 6 de março de 2016

Um senhor comunista na família

Das conversas de cantos silenciadas nos almoços de família, descobri que meu tio é comunista. Eu achava que apenas eu e minha prima éramos meio tortas no meio dos valores conservadores.
Hoje é um homem de botinas, um pouco frustrado, sempre tomando uma cachacinha.
Me contou que sonha conhecer Cuba, que não iria nem de graça para os Estados Unidos "aquele país de infelizes". É ferroviário aposentado. Já defendeu o Lula mas hoje não acredita mais no sistema. Depois de contar que meu avô o ameaçava dizendo que ele iria preso por pensar daquela maneira durante a ditadura, me deixou um conselho:

- Pagamos muito caro por carregar algumas ideias. Mas a gente tem que ir até o fim com elas quando acredita. O importante é dormir tranquilo.

Estamos juntos tio.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

And the stars look very different today

Sou fã tardia do Bowie, embora todo nascido nos anos 80 guarde na memória a sinistra imagem do filme Labirinto.
Mesmo já tendo destrinchado Beatles, Stones e etc. de Bowie conhecia a top list.
Dado o momento da minha vida, e todo o estranhamento que vivi dos 20 pra cá (sobre isso os dois sensíveis textos do Alexandre Matias antes e depois da morte ), de repente caí num cover de Bowie num bar de rock da minha cidade. Caramba! Um cover me deixou assim?
Passei a ouvir mais e mais... Caramba!
Um cara que me paquerava e vivia me mandando sons e referências na internet me mandou um livro infantil que ilustrava a história de Space Oddity. Caramba!
E aí começaram a falar do tal filme Frances Ha. Caramba! Um dos filmes da minha vida e a música Modern Love do Bowie é responsável por toda a catarse que ele nos provoca. Caramba!



Semana passada falaram do disco novo, Blackstar. Falaram dos clipes...Assisti “Lazarus” e fiquei mal, fiquei incomodada... Bowie aparentando a idade mas fazendo uma reflexão imagética sobre lucidez, insanidade, corpo, hospital, sociedade cega...
No celular tenho uma coletânea do Bowie que nunca tiro. Estava cansada dos discos que tinha lá e ele era um coringa para os meus ouvidos, ou camaleão.
Hoje de manhã, estava no ônibus, voltando do interior em direção a São Paulo. Chuva, cinza... Estava sem sono, era umas 7h30. Pensei: vou ouvir um Bowie, Space Oddity.




Aqui é Major Tom para o controle do solo
Estou passando pela porta
E estou flutuando do jeito mais peculiar
E as estrelas parecem bem diferentes hoje.

Fui checar as atualizações do Facebook:
Morre hoje o artista David Bowie aos 69 anos.

Aqui estou eu flutuando em volta da minha lata
Bem acima da lua
O planeta Terra é azul e não há nada que eu possa fazer...

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Praça da República


Entre as copas das árvores um caldeirão social de várias misturas é cozinhado entre sujeitos que se esbarram, se entrelaçam, interagem e também se ignoram.
A monotonia do chão sujo e cinza é quebrada pelo colorido das mini-saias dos transexuais que oferecem seus serviços sexuais a luz do meio dia. 
Numa ponta ou outra, catadores de papelão e moradores de rua, sujeitos de uma realidade desigual, demonstram seus sorrisos acompanhados de seus cães limpinhos, com coleira e ração à vontade. 
Vendedores ambulantes, imigrantes, trabalhadores que aproveitam o horário do almoço para aliviar o cotidiano de caos fumando um cigarro, ora de nicotina, ora de marijuana.
Usuários de crack se arrastam de um canto a outro, pedindo um pão, uma bolacha, brigando entre si.
Um posto policial.
Funcionários da imponente secretaria da Educação, que afronta, oprime e não ouve alunos e professores. Uma verdadeira fortaleza opressora travestida de prédio colonial. 
Nos dias de calor crianças sem pais na faixa dos 10 anos se arriscam nas águas gélidas e fétidas da praça.
Em meio a todo essa caldeirão fervente de indivíduos marginalizados ou apáticos ou sensíveis, uma escola municipal de ensino infantil onde pequenos cidadãos na faixa dos 5 anos transitam, riem e cantam alto, fazendo ecoar a esperança de um mundo novo no coração da praça.
O centro de São Paulo é pesado, é cinza, cheira mau...
Mas é também colorido, vivo, pungente e  tem sido uma das experiências sociais mais interessantes que já vivi.


segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Delírios

Tem dias que me pego em delírios de Ofélia
Penduro-me em salgueiros que rodeiam riachos e espelham suas folhas nas águas geladas.
Tranço  grinaldas de flores com a precisão das minhas mãos, tecendo sonhos entre flores perfumadas.
Elas cheiram a Jasmin, elas tem nome de Jasmin.
Jasmin- Manga, mesclando amarelo, branco e rosa, perfumando a brisa que segue do movimento das águas.

Tem dias que me pego em delírios de Ismália
Vejo a lua no céu, mas ela parece mais viva no mar.
O mar me convida e o vai e vem das ondas atingem meus ouvidos .
Ondas recitam sonhos que ainda não vivi e em movimentos fortes  me ponho a caminhar nas águas, como se Ismália ouvisse o canto de Iemanjá.
Caminho.

Ofélia e Ismália se perderam em delírios.
Eu sigo tentando interpretar as águas, a terra e o ar para não me perder em errados sinais. 


sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Simone, a Geni da vez, sobre mulher, gerações e outros lugares em 'Mal-entendido em Moscou'



“Era raro que Nicole simpatizasse com uma mulher. Com suas alunas, sim: podia-se esperar que crianças e adolescentes fossem diferentes das mais velhas. Mas as adultas! As mulheres jovens eram como Irene: exerciam com um zelo extravagante a “profissão de mulher”: como se fosse uma profissão mesmo! As mais velhas lembravam a Nicole suas revoltas na infância, faziam-na pensar em sua mãe. “Uma moça não pode”. Ela não seria aventureira, nem aviadora, nem capitã de navio. Uma moça. Musselina, organdi, as mãos muito suaves da mamãe, a maciez dos seus braços, o perfume que grudava na minha pele. Seu sonho era que Nicole arranjasse um casamento com alguém rico, pérolas, peles raras. E a briga começou. “Uma moça pode”. Ela continuou seus estudos, jurou contrariar seu destino: escreveria uma tese notória, teria uma cátedra na Sorbonne, provaria que o cérebro de uma mulher vale tanto quanto o de um homem. Nada disso aconteceu. Ela deu cursos e militou nos movimentos feministas. Mas, como as outras- estas outras de quem não gostava- , deixou-se absorver por seu marido, seu filho, seu lar. Macha com certeza não se deixava absorver por ninguém. No entanto, aceitava com naturalidade sua feminilidade: sem dúvida porque vivia, desde seus quinze anos, em um país onde as mulheres não têm complexo de inferioridade. Macha visivelmente não se sentia inferior a ninguém.”

BEAUVOIR, Simone de. Mal-entendido em Moscou. Rio de Janeiro: Record, 2015.

Em tempos politicamente sombrios, Simone se tornou a Geni da vez quando o debate sobre a questão de gênero foi levantado pela bancada cristã/evangélica nos Planos Municipais de Educação e na mais recente prova do ENEM. Porém, contra a burrice, o pensamento, brilhantemente observado por Eliane Brum em seu artigo para o El País. 

Ler, ler, conhecer, se munir... 

Mal- entendido em Moscou foi escolhido para o projeto Leia Mulheres em Itapetininga este mês, com mediação da Déa Paulino. 



segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Centro X Periferia ( os disparates de viver em São Paulo)

- Não tem coisa mais nojenta que banheiro né?
- Pois é, vocês são umas guerreiras.
- E isso aqui é lugar de rico né? Pois nem na favela onde eu moro banheiro fica tanto tempo sem concertar e com essa sujeira.

(faxineira do prédio da Secretaria da Educação)

Voltei para este canto de escrever, o diálogo com a moça do banheiro tornou a necessidade pungente de novo.